domingo, 31 de março de 2013

Philip K. Dick - Está nos Olhos (Conto)


Está nos Olhos

Philip K. Dick


Foi por acaso que descobri esta incrível invasão da Terra por criaturas de outro planeta. Até agora não fiz nada a respeito; não consigo pensar no que fazer. Eu escrevi para o Governo e eles me responderam com um panfleto sobre manutenção e concerto de casas de madeira. De qualquer maneira, a coisa toda é conhecida; não fui o primeiro a descobri-la. Talvez até esteja sob controle.

Eu estava sentado em minha poltrona, ociosamente folheando um livro que alguém deixou no ônibus quando me deparei com a referência que me colocou nos trilhos. Por um momento não respondi. Demorou um tempo para tudo aquilo ser assimilado. Depois que compreendi, parecia estranho que eu não tivesse notado a primeira vista.

A referência era claramente a uma espécie de não humanos providos de poderes incríveis, não naturais na Terra. Uma espécie, apresso-me em assinalar, costumeiramente disfarçada de seres humanos. Seu disfarce, porém, tornou-se transparente em face das seguintes observações do autor. Era óbvio que o autor sabia de tudo. Sabia de tudo - e estava transpondo tudo. A linha (e eu tremo de lembrá-la até agora) lia:

… seus olhos passearam lentamente pela sala.

Vagos calafrios me assaltaram. Tentei visualizar os olhos. Eles rolavam como moedas? A passagem indicava que não; eles pareciam mover-se pelo ar, não pela superfície. Bem rápidos, aparentemente. Ninguém na história estava surpreso. Foi isso que me deu a dica. Nenhum sinal de surpresa em frente a algo tão chocante. A seguir, os detalhes aumentavam.

… seus olhos se moveram de uma pessoa à outra.

Ali estava, em poucas palavras. Os olhos claramente haviam se separado do resto de seu corpo e estavam se movendo por conta própria. Meu coração bateu tão forte que fiquei com falta de ar. Eu havia encontrado por acaso uma menção acidental de uma raça totalmente estranha. Obviamente extraterrestre. Porém, nos capítulos do livro, isso era tudo perfeitamente natural - o que sugeria que eles pertenciam à mesma espécie.

E o autor? Uma lenta suspeita queimava em minha mente. O autor estava levando tudo numa boa. Evidentemente, ele sabia que era algo muito normal. Em nenhum momento ele fez alguma tentativa de esconder seu conhecimento. A história continuava:

… agora seus olhos estavam fixos em Julia.

Julia, por ser uma dama, teve ao menos a educação de sentir-se indignada. Ela é descrita como ficando corada e franzindo a sobrancelha enfurecida. Suspirei aliviado. Eles não eram todos alienígenas. A narrativa continua:

… lentamente, calmamente, seus olhos examinaram cada polegada do corpo dela.

Meu Deus! Mas aqui a garota virou-se e deu o fora e tudo acabou. Recostei em minha poltrona, ofegante com o horror. Minha esposa e os meus filhos me olham, assombrados.

- Qual o problema querido? - minha esposa perguntou.

Eu não podia contar a ela. Esse tipo de conhecimento era demais para uma pessoa comum. Eu tinha que manter segredo.

- Nada, suspirei.

Levantei, peguei o livro e corri para fora da sala.


Na garagem, continuei a leitura. Havia mais. Trêmulo, li a próxima passagem reveladora:

… ele pôs seu braço em volta de Julia. Prontamente ela lhe perguntou se ele podia remover seu braço. Ele imediatamente o fez, com um sorriso.

Não é explicado o que foi feito com o braço depois que ele o removeu. Talvez tenha ficado em algum canto. Talvez tenha sido jogado fora. Eu não me importo. O problema é: toda a verdade estava lá, me encarando.

Havia uma raça de criaturas capazes de remover partes de sua anatomia de acordo com a sua vontade. Olhos, braços - e talvez mais. Sem mover um cílio. Meu conhecimento de biologia veio a calhar nesse ponto. Obviamente elas eram criaturas simples, unicelulares, algum tipo de criatura primitiva formada por uma única célula. Seres menos desenvolvidos do que estrelas-do-mar. Estrelas-do-mar podem fazer a mesma coisa, sabe.

Continuei a ler. E cheguei a essa revelação incrível, exposta com toda a frieza pelo autor, sem o mínimo tremor.

… fora do cinema nós nos separamos. Uma parte entrou, outra parte foi para a lanchonete jantar.

Fissão binária, obviamente. Separando-se ao meio e formando duas entidades. Provavelmente cada parte inferior foi para a lanchonete, por ser ela mais longe, e as partes superiores foram para o cinema. Continuei lendo, as mãos tremiam. Eu realmente havia me deparado com alguma coisa aqui. Minha mente cambaleava enquanto eu lia essa passagem:

… Temo que não haja dúvidas. Pobre Bibney perdeu a sua cabeça novamente.

A qual era seguida por:

… e Bob disse que ele não tinha miolos para isso.

Porém Bibney andava por aí como qualquer pessoa. O cara ao lado, qualquer um, era apenas mais um estranho. Ele foi logo descrito como.

… totalmente desprovido de cérebro.

Não havia dúvidas da coisa na próxima passagem. Julia, a qual eu havia pensado ser a única pessoa normal, revela-se como sendo uma forma de vida alienígena também, similar ao resto:

… deliberadamente, Julia havia dado seu coração ao jovem.

Não explicava qual era a disposição final do órgão, mas eu realmente não me importava. Era evidente que Julia continuou vivendo normalmente, como todos no livro. Sem corações, braços, olhos, cérebros, vísceras, dividindo-se em dois sempre que a ocasião demandasse. Sem escrúpulos.

… então ela lhe deu sua mão.

Fiquei doente. O patife agora tinha a mão dela, assim como o coração. Estremeço de pensar no que ele fez com ambas, a essa altura.

… ele pegou o braço dela.

Não se contentando em esperar, ele começara a desmembrá-la por conta própria. Vermelho como um tomate, eu fechei violentamente o livro e saltei de pé. Mas não em tempo para escapar de uma última referência a aqueles pedaços despreocupados de anatomia das quais as viagens tinham me direcionado:

… os olhos dela o seguiram por todo o caminho até a estrada e através do prado.

Corri da garagem para dentro da casa calorosa, como se coisas amaldiçoadas estivessem me seguindo. Minha esposa e meus filhos estavam jogando Banco Imobiliário na cozinha. Me juntei a eles e joguei com fervor frenético, testa febril, dentes batendo.

Eu já tinha suportado demais. Não quero saber mais nada disso. Que eles venham. Que invadam a Terra. Não vou me meter nisso.

Absolutamente não tenho estômago para isso.


Título Original: The Eyes Have It
Tradução Herman Schmitz
(This etext was produced from Science Fiction Stories 1953. Extensive research did not uncover any evidence that the U.S. copyright on this publication was renewed.)